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A gênese e O céu e o inferno: alterações feitas por Kardec

Confira a íntegra da entrevista realizada com os pesquisadores Adair Ribeiro Jr., Carlos Seth Bastos e Luciana Farias pela revista Reformador, sobre alterações feitas por Kardec nas obras A gênese e O céu e o inferno. A matéria estará na edição de abril da revista, que pode ser adquirida no site: www.febeditora.com.br.  

A gênese e O céu e o inferno: alterações feitas por Kardec

Adair Ribeiro Jr[1], Carlos Seth Bastos[2], Luciana Farias[3]

Reformador: Antes de explorarmos as dúvidas suscitadas sobre as últimas edições de A gênese e O céu e o inferno, poderiam nos contar como começou esta parceria entre vocês?

No início de 2020, nossos primeiros debates foram acerca da tese da adulteração de A gênese. Na época, eu (Luciana) e Adair aceitávamos que a obra tinha sido adulterada, enquanto Carlos considerava que, embora fosse possível como hipótese, não havia elementos suficientes para confirmar que terceiros alteraram e publicaram a nova edição, pelo menos não da forma com que a história fora divulgada. Foi justamente essa troca de ideias entre duas certezas e uma dúvida que motivou os três a se aprofundarem juntos no tema, em um clima de respeito e colaboração.

Reformador: Como então se desenvolveu esta pesquisa colaborativa?

Eu (Adair) moro em São Paulo, capital; Luciana, em Brasília e Carlos, em Jacareí, interior de São Paulo. Assim, nossa interação foi sempre virtual. De um lado, eu e Luciana nos propusemos a listar todos os argumentos que nos convenceram da adulteração, com as respectivas referências comprobatórias. De outro, Carlos apresentou suas dúvidas acerca dos argumentos da tese que ele considerou como não comprovados. Desse exercício ficou claro para os três que a adulteração não estava totalmente fundamentada, pois constatamos alguns argumentos sem comprovação, sendo estes, portanto, suposições. Além disso, observamos algumas inferências em interpretações dos documentos.

Com esse cenário montado, os três iniciaram a investigação em busca de novos documentos para substituir as suposições e inferências e complementar a pesquisa. Desde o início, nossa intenção foi de conhecer o que de fato aconteceu na época, independentemente de as novas evidências confirmarem ou refutarem a adulteração.

Reformador: Quais foram as consequências desta investigação?

Os três terminaram convencidos de que Kardec atualizou A gênese. A quantidade de fontes documentais localizadas e analisadas impressionou a todos. Para mim (Carlos) ficou a satisfação de ter minhas dúvidas esclarecidas e ver uma resposta para a questão. Para Luciana e Adair, o resultado foi inesperado, pelo consenso final ser o oposto da certeza inicial deles. 

Em 2021, quando saiu a proposta de que O céu e o inferno também teria sido adulterado, já havíamos aprofundado nosso conhecimento sobre a legislação e obtido acesso a algumas fontes primárias da época, que demonstravam que a edição tinha sido atualizada pelo autor e publicada postumamente. 

Reformador: Vamos aos detalhes da pesquisa, a começar por A gênese. Em 2017 foi anunciado que a obra tinha sido adulterada. Como surgiu essa tese?

A questão surgiu na Argentina, em relação a uma edição de A gênese em espanhol, traduzida por Gustavo Martinez, presidente da Confederación Espiritista Argentina (CEA). A tradução foi lançada em 2010, pelo Conselho Espírita Internacional (CEI), e na Apresentação constava que ela foi elaborada a partir da reprodução de um exemplar da 4ª edição francesa, de 1869, pertencente à Biblioteca Nacional da França (BnF).

Essa reprodução também foi publicada pelo CEI, em junho do ano anterior. Martinez contou que foi questionado sobre o texto daquela tradução, de que ele não corresponderia ao texto definitivo da obra, escrito e publicado por Kardec. Diante da dúvida, ele solicitou a Simoni Privato Goidanich que investigasse e esclarecesse a questão: Qual o texto definitivo da obra A gênese? A resposta foi anunciada no 4º Congresso Espírita Sul-Americano, em Bogotá, em 2017: a investigação teria comprovado que a edição do acervo da BnF, utilizada na tradução de A gênese, era a 5ª, adulterada e publicada em 1872. Todos os argumentos e provas que sustentariam estas conclusões constavam no seu livro O legado de Allan Kardec. Por certo, a pesquisa de Privato demonstrou que não existe na BnF o exemplar da 4ª edição de 1869, que o CEI diz ter utilizado em sua reprodução. Já quanto aos demais argumentos e comprovações, era necessário analisar e conferir. Foi o que fizemos.

Reformador: Em suas análises, a pesquisa de Simoni Privato apresentou toda a comprovação documental necessária para demonstrar que A gênese foi adulterada?

Não; a documentação apresentada foi insuficiente, tornando a pesquisa incompleta. Privato começou por um bom caminho, ao propor uma abordagem jurídica, uma forma pertinente de lidar com a questão. Ela seguiu uma linha de raciocínio e encontrou documentos com informações fundamentais para o caso, mas não todas as fontes de que necessitava para demonstrar a adulteração. Foi, então, necessário que ela fizesse algumas suposições no meio do caminho, a fim de completar sua análise. Como qualquer conclusão baseada em suposição não está totalmente comprovada, consideramos que a pesquisa dela ofereceu avanços, mas, ao fim, a questão continuou sem resposta. 

Reformador: Poderiam apresentar, resumidamente, o que a pesquisa de Privato comprovou e quais foram suas suposições? 

O ponto central defendido na tese proposta por Privato foi o desrespeito ao direito moral do autor à integridade da obra, conforme citação apresentada: “Com efeito, ninguém pode modificar a obra sem autorização do autor. Qualquer alteração, substituição, edição ou remodelação em seu conteúdo torna-a diferente do originalmente pensado, e, com isso, a mutila, ferindo-lhe a integridade”. A interferência de terceiros numa obra sem que o autor tenha autorizado é algo simples de ser entendido, mas um grande desafio para ser comprovado. A estratégia usada foi identificar o último conteúdo autorizado pelo autor e propor reconhecê-lo como definitivo. Na pesquisa, Privato se deparou com um documento relevante – a Declaração de Impressão de fevereiro de 1869. Por ela soubemos que, cerca de um mês antes de Kardec falecer, a tipografia registrou, em seu nome, um aviso para o governo francês de que iria imprimir dois mil exemplares de A gênese. Privato também demonstrou que a 4ª edição da obra foi publicada ainda em 1868 e a 5ª somente em 1872. Logo, que edição saiu em 1869, cumprindo o último pedido autorizado por Kardec? Ela não informou em seu livro, já que não localizou nenhuma edição daquele ano. E sem a edição, sua investigação continuava inconclusiva. O ideal seria folhear a edição de 1869 e checar se houve atualização. Na impossibilidade, Privato propôs uma interpretação puramente jurídica para determinar qual seria seu conteúdo. Ela observou que um registro previsto em lei estava ausente – o Depósito Legal – e supôs que este deveria ser feito somente se o conteúdo da obra tivesse sofrido alteração. Dizemos supôs porque o Decreto Imperial de dezembro de 1810 (legislação apresentada em seu livro) cita a necessidade do registro, mas não indica restrição a casos específicos. Privato também não informou em qual artigo nem em qual outra lei francesa consta o que ela afirmou (sabemos apenas que essa regra vale para o Depósito Legal no Brasil, segundo a lei vigente hoje). 

A segunda suposição foi a de que Kardec não tinha os manuscritos prontos da obra atualizada. Aqui há uma inferência: se ele tivesse concluído a atualização, os manuscritos teriam sido utilizados para publicar a edição de 1869 e, pela primeira suposição, o Depósito Legal teria sido registrado. Foi desta forma que Privato estabeleceu, sem comprovar, que a última solicitação para impressão com Kardec vivo seria de exemplares com o mesmo conteúdo já autorizado e depositado legalmente, mesmo sem nunca ter visto um exemplar destes, mesmo sem saber que edição era essa. E, assim, ela concluiu que Kardec não teria publicado nem autorizado a publicação do conteúdo atualizado.

Reformador: Então foi daí que surgiu a tese da adulteração, divulgada em 2017? 

Sim; foram essas suposições, somadas aos documentos por ela encontrados, que levaram Privato a concluir pela adulteração. Mas a defesa da tese ainda não acabou: era preciso comprovar a ação de terceiros para que o direito moral fosse desrespeitado. Como a edição atualizada que ela analisou era de 1872, ano confirmado nos registros legais, Privato supôs que esta não tivesse sido impressa a partir dos manuscritos do autor. Consequentemente, ela inferiu que as modificações no texto da obra só poderiam ter sido feitas pela Sociedade Anônima, que a publicou, responsabilizando os administradores pela adulteração.

Nessa argumentação, que assume a atualização da obra apenas em 1872, foram desconsiderados os testemunhos de Rouge, o tipógrafo; Rousset, da galvanoplastia; e Desliens, secretário de Kardec, publicados na Revista Espírita em 1884 e 1885, que afirmavam que a segunda tiragem da obra era da edição atualizada por Kardec, publicada em 1869, sendo a de 1872 uma reprodução desta. Reafirmamos: fazendo suposições e assumindo como equivocadas as fontes que evidenciavam o contrário, a pesquisa de Privato nunca chegou de fato a ser conclusiva, embora alguns a tenham adotado como verdade incontestável.

Reformador: Sua explicação sobre a pesquisa de Privato difere em alguns pontos do que afirmam nas divulgações sobre as causas da adulteração, principalmente em relação à Declaração de Impressão de fevereiro de 1869 e ao Depósito Legal. Qual o motivo dessas diferenças?

Bem observado! Confesso que eu (Luciana) demorei a compreender a essência da tese de Privato. Atribuo isso em parte a ter inicialmente ouvido e lido as divulgações sobre a pesquisa dela para, então, ler o livro, meses depois, com a sensação de que eu já sabia de tudo o que estava escrito. Foi somente depois que nós três decidimos ir a fundo na questão, que eu realmente estudei o conteúdo de O legado de Allan Kardec e pude ver o que foi abordado nele e o que não estava lá. 

Duas afirmações divulgadas, sem nenhuma relação com a análise de Privato, atrapalharam o entendimento do que foi de fato estudado por ela, ainda mais que estas se tornaram, na percepção de alguns, a causa da comprovação da adulteração. Primeiro, afirmaram que a Declaração de Impressão de Fevereiro de 1869 seria o pedido da 4ª edição e, por consequência, esta edição seria de 1869. Tal afirmação discorda do demonstrado por Privato, já que ela diz várias vezes no livro que a 4ª edição de A gênese é de 1868 e, ao tratar da Declaração de Impressão, ela se refere a exemplares com o mesmo conteúdo depositado legalmente, sem dizer o número da edição. Tal afirmação, sem apresentar provas de sua validade nem o porquê de Privato estar equivocada, cai no terreno da especulação.

Segundo, alegaram que a obra era considerada adulterada porque o Depósito Legal não tinha sido feito antes da morte de Kardec. Em outras palavras, transformaram a ausência do Depósito Legal na demonstração incontestável da adulteração, além de definirem que havia um prazo limite para ele ocorrer, de forma que a obra fosse aceita legalmente. O significado que Privato deu ao Depósito Legal foi outro! Para ela, sua ausência era tão somente o indicativo de que os exemplares da edição desconhecida de 1869 teriam necessariamente o mesmo conteúdo da 4ª. Caso o registro tivesse sido encontrado naquele ano, por sua suposição, Kardec teria autorizado em vida uma edição atualizada da obra dele. Com isso, seria necessário continuar a pesquisa para demonstrar qual o conteúdo desta edição e se ele diferia do publicado em 1872. Entender que esse segundo ponto diverge da pesquisa de 2017 é fundamental, já que a justificativa jurídica apresentada para a adulteração de O céu e o inferno se baseia nele, apenas pelos registros legais terem sido feitos pela tipografia quatro meses após a morte de Kardec.

Reformador: Então, apenas o fato da edição atualizada de A gênese ser publicada após a morte de Kardec não é suficiente para se configurar uma adulteração? 

De jeito nenhum! Se assim fosse, não seria possível nenhuma publicação póstuma. E existem várias, como a 2ª edição de Os procuradores de Deus, primeira obra de Hermínio C. Miranda, revisada pelo autor ao fim da vida, que infelizmente faleceu antes de vê-la publicada, o que só aconteceu quase dois anos depois. Esse é um aspecto da tese da adulteração que não ficou claro para alguns: mesmo a edição atualizada de A gênese sendo póstuma, ela somente se torna adulteração se restar comprovado que a atualização não foi feita nem autorizada pelo autor. Esse foi o caso que Privato defendeu e procurou demonstrar que teria ocorrido. 

Reformador: Que evidências foram encontradas após 2017? O que elas demonstram? 

A edição de A gênese, publicada em 1869, peça que faltava para completar essa história, foi encontrada pelo CSI do Espiritismo em fevereiro de 2020, numa biblioteca na Suíça. De posse desse exemplar, pudemos conhecer e analisar a última edição autorizada por Kardec, da mesma forma que Privato analisou as demais. Trata-se da 1ª impressão da 5ª edição (fato que não é inédito: a 2ª edição de O livro dos espíritos também teve duas impressões). A constatação de que seu conteúdo é idêntico ao da 5ª edição de 1872 é a primeira demonstração documental que contraria a suposição de Privato e, portanto, a tese concluída a partir dela.

Reformador: E quanto à legislação da época, ela oferece fundamento para a suposição de Privato sobre o Depósito Legal? 

Não nos furtamos à análise jurídica e consultamos todas as alterações ao Decreto Imperial de 1810. Localizamos, no artigo 14 da lei de 21 de outubro de 1814, que o registro do Depósito Legal da edição era obrigatório para todas as Declarações de Impressão, mesmo que seu conteúdo fosse igual ao depositado anteriormente (e foi o que observamos nos registros feitos para edições idênticas de outras obras de Kardec). Assim, a suposição de Privato se mostrou infundada. O que ela de fato descobriu foi que a tipografia descumpriu a Lei. O debate sobre os efeitos desse descumprimento, se a edição de 1869 poderia ou não ser comercializada, segundo a legislação da época, não influencia na identificação do autor das alterações, que é o foco da nossa pesquisa. 

Reformador: Sobre os rumores de que a 5ª edição, de 1869, cujo exemplar foi encontrado na Suíça, seria ilegal ou clandestina, qual a posição de vocês? 

Um ponto que incomodou alguns foi o exemplar ter aparecido fora da França, como se isso fosse motivo para suspeitarmos dele. Exemplares são preservados em bibliotecas ou em coleções particulares e é comum que pesquisadores encontrem suas referências ao redor do mundo. Apenas a 1ª e a 5ª edição (de 1872) de A gênese foram localizadas na BnF, na França. Privato encontrou a 2ª edição na Biblioteca Nacional Victor Manuel III, de Nápoles, Itália, a 3ª edição na Biblioteca Real de Copenhagen, Dinamarca, a 4ª edição na Biblioteca Municipal de Lyon, França, e na Biblioteca S. J. Maison Saint-Augustin, Enghien, Bélgica. 

A alegação de que essa edição seria clandestina não veio acompanhada da lei e artigo que sustentariam tal entendimento, nem da demonstração de que este é um caso concreto da previsão legal (se ela existisse). O argumento para a clandestinidade considera que esta edição não teria nenhum registro legal, nem declaração de impressão nem depósito legal, já que a declaração de 1869 seria da 4ª edição. Como vimos, esse entendimento discorda da pesquisa de Privato e não tem qualquer comprovação. Estando no terreno da opinião, faltam-nos elementos para examiná-la. 

O que podemos apresentar são as demonstrações de que houve uma edição publicada pela Livraria Espírita em 1869 e que este seria um de seus exemplares. Consta na folha de rosto do exemplar encontrado que a edição é de 1869 e a editora é a Livraria Espírita e de Ciências Psicológicas. Rouge e Desliens testemunharam que imprimiram uma segunda tiragem da obra com a edição atualizada e publicaram em 1869. Desliens afirma que esta segunda tiragem é da Livraria Espírita

A autorização da segunda tiragem é a Declaração de Impressão de 1869. Amélie Boudet preparou o Inventário Geral do ano de 1873, com o estoque da Livraria Espírita, e registrou 1.095 exemplares da 5ª edição, correspondentes à tiragem de 1869. Esse inventário foi formalizado e aceito na Ata do mesmo ano da Assembleia Geral Ordinária da Sociedade Anônima, assinada por Amélie Boudet e depositada nos Arquivos Municipais de Paris. O exemplar da 5ª edição está na biblioteca de uma universidade e, segundo o bibliotecário, foi transferido para lá como parte do acervo da biblioteca da Faculdade de Teologia, que encerrou suas atividades. Por fim, quando investigamos a interpretação jurídica de Privato, lemos as leis, artigos e ordenanças que versavam sobre a impressão de obras na França, entre 1810 e 1870; e o que encontramos sobre clandestinidade foi o artigo 13 da ordenança de 21 de outubro de 1814, que determina que tipografias que não tenham a licença de funcionamento são consideradas clandestinas, assim como as obras impressas por elas (Artigo 14). A tipografia da 5ª edição de 1869 é a Rouge Frères, Dunon et Fresné e, na época, ela possuía uma licença de funcionamento; portanto, não se enquadrava na condição de clandestina.

Reformador: Onde estão depositadas estas fontes primárias? 

As facilidades oferecidas pela tecnologia atual nos propiciaram encontrar a maior parte delas já digitalizadas e acessíveis pela internet. Os registros da Declaração de Impressão e do Depósito Legal estão disponíveis apenas fisicamente nos Arquivos Nacionais da França. Os registros de interesse para nossa pesquisa podem também ser encontrados nos nossos sites (facebook.com/HistoriaDoEspiritismo, allankardec.online e obrasdekardec.com.br) e, especificamente sobre o do Depósito Legal, este pode ser conferido no periódico Bibliographie de la France, disponível no Google Books e na Gallica, que é um dos repositórios de documentos digitalizados da BnF. Outros documentos, como manuscritos com comunicações mediúnicas e cartas, pertencem ou ao acervo AKOL (adquiridos da Livraria Leymarie), ou ao acervo de Canuto Abreu, já que alguns já estão publicados pela Universidade Federal de Juiz de Fora por meio do projeto Allan Kardec. Além disso, usamos documentos encontrados tanto nos Arquivos Nacionais como nos Arquivos Municipais de Paris, por exemplo, as atas de Assembleias Gerais da Sociedade Anônima. 

Reformador: O que vocês verificaram sobre a primeira denúncia de adulteração de A gênese proposta por Henri Sausse, na França, no século XIX?

Após lermos a denúncia, no Le Spiritisme em 1884, as réplicas e a tréplica, buscamos as repercussões ocorridas no Movimento Espírita francês. Efetuamos um levantamento bibliográfico nos cinquenta anos seguintes, em jornais espíritas (Le Spiritisme, Le Progrès Spirite e Revue Scientifique et Morale du Spiritisme) e obras dos principais continuadores da obra de Allan Kardec, além de analisar anais dos congressos espíritas. Se eles seguissem acreditando na adulteração, no mínimo não utilizariam textos que defendem não ser do autor. Verificamos o contrário, já que localizamos publicações de Sausse e outros fiéis seguidores de Kardec fazendo uso de textos identificados como adulterados na denúncia, para discorrer e fundamentar fenômenos dentro da Doutrina Espírita. 

Reformador: Poderiam exemplificar algumas destas publicações e quem são os autores?

Começamos pela mais recente, pois contém o reconhecimento de Henri Sausse de que A gênese foi atualizada por Kardec, afirmação oposta ao que ele disse na denúncia. Em 1925, no artigo “Em busca das origens da alma humana”, apresentado por Sausse no Congresso Espírita Internacional, em Paris, encontramos a seguinte declaração, seguida de vários textos atualizados de A gênese (segundo ele, extraídos da 7ª edição): “Mas vamos continuar nossas pesquisas e abrir A gênese, a última obra publicada, revista e corrigida por Allan Kardec; ela deve nos dar o último pensamento do mestre sobre o assunto da alma humana. […] Em sua última obra, A gênese, Allan Kardec apenas confirmou e acentuou a visão da Doutrina sobre o tema da origem dos Espíritos: Questão ainda insolúvel”. Em La Réincarnation selon le spiritisme – Enseignements d’Allan Kardec (1918), Sausse transcreveu trechos alterados de A gênese para fundamentar os ensinamentos do Codificador.

Entre os demais continuadores, podemos mencionar Gabriel Delanne nas obras Les Apparitions matérialisées des vivants et des morts – Tome II (1911); e Documents pour servir à l’étude de la réincarnation (1924); e, também, nos periódicos Revue Scientifique et Morale du Spiritisme e Le Spiritisme, fazendo uso de textos que só existem na 5ª edição, inclusive partes do capítulo XVIII que, segundo Henri Sausse, teria sido o mais maltratado. 

Léon Denis também utilizou textos alterados na sua obra de 1905, Le Problème de l’être et de la destinée. O mesmo ocorreu com Adolphe Laurent de Faget que, durante os dezoito anos em que esteve à frente do Le Progrès Spirite, escreveu dezenas de artigos sobre o Espiritismo, e em muitos deles fez uso de textos somente encontrados na 5ª edição de A gênese

Reformador: Sabemos que a suspeita da adulteração de A gênese começou no Brasil bem antes de 2017. Publicamos artigos sobre o tema em Reformador, em outras ocasiões. Vocês investigaram esses debates anteriores?

Sim. Conhecer esse histórico nos trouxe uma perspectiva interessante: longe de ser uma novidade, uma descoberta do nosso século, a suspeita de adulteração foi noticiada várias vezes nos últimos cem anos. Em todas, alegaram que a tradução tinha sido adulterada e o motivo foi sempre o mesmo: a defesa dos interesses roustainguistas. Fizemos o caminho de trás para a frente. Encontramos primeiro uma publicação de João Donha e Felipe Gonçalves, em 2009. Foi útil ver o quanto eles tinham avançado na pesquisa sobre o tema, e que eles conseguiram comprovar que as traduções brasileiras da obra não são adulterações da original, que era o foco da denúncia na época. Eles consideraram a hipótese de o original ter sido adulterado na França, fizeram uma lista das diferenças entre as edições e declararam a impossibilidade de resolver a questão naquele momento.

Depois, no livro Allan Kardec: pesquisa biobibliográfica, de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen (1973), vimos um apêndice do volume III que traz uma retrospectiva intitulada A história da origem da celeuma sobre A gênese. A intenção foi documentá-la, pois temiam que mais tarde essa história se perdesse. Nele encontramos referências ao primeiro artigo de Reformador, de janeiro de 1928, que nos levou à denúncia de Jarbas Ramos, diretor do Brasil Espírita em O Jornal de 24 de dezembro de 1927, a mais antiga que consultamos. 

Por último, encontramos, no prefácio da primeira edição em português de A gênese (1882), o relato de uma tentativa real de adulteração da tradução, que não deu certo: “Conquanto alguns condiscípulos mostrassem desejo de que modificações fossem feitas em certos pontos deste volume, de acordo com as ideias manifestadas na obra Os quatro evangelhos explicados segundo o Espiritismo, e outras que os Membros da Sociedade Acadêmica também conhecem; publicamos a presente tradução de A gênese, sem a mínima alteração e mesmo sem anotações” (Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade, traduzida a partir da 8ª edição em francês).

Pelo visto, os roustainguistas brasileiros do século XIX não concordavam com partes da 5ª  edição e queriam modificá-las. Ironicamente, os adeptos dos séculos seguintes foram alvo de acusações de que essa mesma edição teria sido adulterada por eles para defender suas ideias. Do nosso ponto de vista, não vemos como as alterações presentes na obra possam servir para defender a tese de Roustaing.

Reformador: O que levou vocês a considerarem que as modificações em A gênese não tinham como objetivo defender as ideias de Roustaing?

Analisamos o que a 5ª edição da obra nos diz sobre a ideia principal da teoria de Roustaing, com base na perspectiva que Allan Kardec nos ofereceu acerca de Os quatro evangelhos. Começamos pela Revista Espírita de 1866, em que Kardec diz que a teoria contida em Os quatro evangelhos faz do Cristo um agênere, um corpo fluídico concretizado, com todas as aparências da materialidade. E conclui: “Sem nos pronunciarmos pró ou contra essa teoria, diremos que ela é no mínimo hipotética, e que se um dia fosse reconhecida errônea, por falta de base, o edifício desabaria”. Vemos que, na percepção de Kardec, a essência dessa tese desabaria se Jesus tivesse um corpo carnal. Lemos na 5ª edição a apresentação da hipótese do corpo fluídico, seguida de uma análise detalhada e a conclusão escrita de forma clara e direta: “Jesus, pois, teve, como todo homem, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que lhe assinalaram a existência.” (capítulo XV, item 66). 

Constatamos, pois, não a defesa da teoria, mas a demonstração de que suas consequências lógicas são inadmissíveis. Outros pesquisadores chegaram ao mesmo entendimento. Eles se utilizaram da 5ª edição para demonstrar que a conclusão dada pela Doutrina Espírita refuta a ideia do corpo fluídico de Jesus, por exemplo, Herculano Pires e Júlio Abreu Filho, em O verbo e a carne (1972). 

Reformador: E quanto ao conteúdo, o que vocês têm a dizer sobre mudanças na Doutrina?

Muitos espíritas, inclusive eu (Adair) e Carlos, já desenvolveram este assunto em lives e posts. Não observamos nenhuma imprecisão nem prejuízo doutrinário. Vemos ganhos, como o apontado por Delanne sobre a fotografia do pensamento. A maior parte das polêmicas remetem à falta de hermenêutica ou a interpretações próprias do texto, algumas anacrônicas, ou mesmo a inferência sobre o estilo do autor. Também, não ousamos nos considerar especialistas nas motivações de Kardec. Isso não interfere na análise histórica da autoria, mais objetiva e baseada em evidências materiais, fugindo da subjetividade das opiniões. 

Reformador: Sobre a última edição de O céu e o inferno, por que ela foi considerada adulterada? Qual a relação com a tese da adulteração de A gênese?

Do ponto de vista da historiografia, com as fontes identificadas na pesquisa sobre a 5ª edição de A gênese, a tese da adulteração de O céu e o inferno, proposta em outubro de 2020 por Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio, na obra Nem céu, nem inferno, já nasceu praticamente morta. Apenas dois documentos foram apresentados como demonstração jurídica: a Declaração de Impressão e o Depósito Legal, ambos posteriores à morte de Kardec. A 4ª edição de O céu e o inferno foi considerada adulterada basicamente por ser póstuma, embora estivesse à venda em 1º de junho, apenas dois meses depois da morte de Kardec, conforme anúncio da Revista Espírita de julho de 1869. A 2ª e a 3ª edições de O céu e o inferno ainda não foram localizadas, mas tudo indica que sejam iguais à 1ª, posto que o anúncio da 4ª informa sobre a atualização. Duas fontes primárias ligam a atualização da 4ª edição a Kardec. Na carta de setembro de 1868, sobre a tradução de A gênese para o alemão, Kardec avisa que O céu e o inferno vai igualmente ser reimpresso com correções. Amélie Boudet também declara, no Inventário de 1873, que a 4ª edição foi impressa em fevereiro de 1869.

Como prova circunstancial, apontamos que, na 4ª e na 5ª edições de A gênese, é mencionado o capítulo X – Os demônios, de O céu e o inferno, que é o capítulo da 1ª edição, pois na 4ª edição este é o capítulo IX. Teria Kardec esquecido de fazer o ajuste? Mas apenas na 5ª, e não na 4ª edição de A gênese é mencionado o capítulo XII, que só existe na 1ª edição de O céu e o inferno. O conjunto de evidências nos sugere que O céu e o inferno foi revisado por Kardec após concluir a atualização de A gênese

Também notamos muitas diferenças no contexto histórico apresentado nos livros que descrevem as teses. Enquanto Privato indica o início dos desvios da Sociedade Anônima ao longo da gestão de Leymarie e a chegada do roustainguismo apenas em 1879, com Guérin; Figueiredo e Sampaio descrevem um plano conspiratório para desestruturar o Espiritismo, iniciado pelo próprio Roustaing, de Bordeaux, com a ajuda de Pezzani, de Lyon, contando também com pessoas próximas de Kardec, que apenas aguardavam sua morte para agir. Estudamos o período pós-Kardec e até o momento não encontramos nada que sustente tal plano.

Reformador: Qual o papel de Amélie Boudet nas publicações póstumas da 5ª edição de A gênese e na 4ª edição de O céu e o inferno?

Na pesquisa sobre a 5ª edição de A gênese, verificamos a previsão legal para a morte do autor com uma obra concluída, sem tê-la publicado, e vimos que Amélie Boudet, como herdeira, poderia publicá-la, já que “A morte do autor não influencia o contrato celebrado com uma editora, quando a obra, objeto deste contrato, estiver totalmente concluída. […] O manuscrito está completo; o autor, durante sua vida, comprometeu-se a entregá-lo ao editor. Seus herdeiros estão obviamente vinculados à mesma obrigação”. Além disso, Amélie declarou que assumiu de pronto as funções do marido durante a transição, inclusive a publicação de suas obras. É um equívoco atribuir à Sociedade Anônima a responsabilidade pelo que aconteceu entre abril e agosto de 1869. Apenas em 13 de agosto, dia da segunda Assembleia Geral, foi concluída a constituição da Sociedade (iniciada no Ato de 3 de julho), dando início a sua operação.

Apresentamos no ENLIHPE de 2021 o artigo A atuação de Amélie Boudet na sucessão de Allan Kardec, que conta detalhes desse período. No final de 2019, recebemos cópia digital da Declaração de Impressão de O céu e o inferno, datada de 1869, obtida por Charles Kempf nos Arquivos Nacionais da França; consultamos o anúncio do Depósito Legal no jornal Bibliographie de la France; e constatamos que as datas eram de julho. Portanto, se pretendem culpar o responsável pela publicação da 4ª edição de O céu e o inferno, seguramente estarão falando de Amélie. Isso também vale para a 11ª edição de O livro dos médiuns e a 2ª edição de Caracteres da revelação espírita

Reformador: Poderiam enumerar todas as evidências que confirmam a autoria de Kardec para as atualizações de suas últimas obras? 

Foram investigadas mais de 20 evidências, algumas circunstanciais e outras bastante robustas. Além da Declaração de Impressão e do próprio exemplar de 1869, bem como da carta de 1868 e dos manuscritos com as comunicações sobre o tema, que são todas provas robustas, eu (Carlos), particularmente gosto destas duas: – O testemunho de Flammarion no enterro de Kardec, quando ele afirma que este já estava trabalhando em outra obra sobre o magnetismo (prova circunstancial, pois nada impediria dele ter começado e deixado por terminar a revisão das duas últimas obras); – O inventário de 1873 feito pelo Conselho Fiscal da Sociedade Anônima, que menciona a 5ª e a 6ª edições de A gênese de 1869 e a 4ª edição de O céu e o inferno como de fevereiro de 1869 (prova mais robusta, já que é também referenciada na Ata da Assembleia Geral Ordinária daquele ano, assinada por Amélie Boudet, pelo Conselho Fiscal, e por Leymarie, pela administração – disponível nos Arquivos Municipais de Paris).

Eu (Adair) acrescentaria mais duas que considero também importantes: – Com a descoberta da primeira versão do Catálogo Racional (que se encontra no museu AKOL), impressa por Kardec em março de 1869 e que circulou aos assinantes da Revista Espírita em abril daquele ano, verificou-se que 4ª edição de O céu e o inferno era a disponível para aquisição na Livraria Espírita. Além disso, neste catálogo é feita menção ao item 7 do capítulo VIII, exclusivo da 5ª edição de A gênese, na obra de Louis Michel de Figagnères: La Clef de la vie; – Vários textos acrescentados e alterados na 5ª edição de A gênese foram publicados previamente na Revista Espírita

Reformador: Quais as considerações de vocês sobre os efeitos que a tese da adulteração causou no Movimento Espírita? 

Desde o início da divulgação da tese da adulteração de A gênese, ela foi tomada como válida, quando a cautela determinava a necessidade de debate e validação da proposta por outros pesquisadores e estudiosos. Além disso, na tentativa de explicar a pesquisa de Privato para o Movimento Espírita, as divulgações feitas acabaram por incorporar outras ideias a ela, o que confundiu mais do que esclareceu. Ademais, interpretações sobre o conteúdo e opiniões do que Kardec faria ou não faria também foram convertidas em provas da adulteração. Ao afirmarem que estávamos diante de uma verdade incontestável, os adeptos da adulteração se opuseram veementemente a qualquer iniciativa de pesquisar mais sobre o assunto, o que é contrário ao próprio conceito defendido pela Ciência, de que toda afirmação deve ser validada e pode ser corroborada ou refutada por novas evidências. A demonstração de que a história não aconteceu como descrito inicialmente não foi suficiente para eles.

Vimos a adulteração sair da condição de uma conclusão, a partir de argumentos que precisavam ser comprovados, para se tornar uma verdade por convicção. Alardeando que a adulteração teria como objetivo legitimar a teoria roustainguista e manter dogmas religiosos – sem explicar como, já que a conclusão de Kardec sobre o corpo carnal de Jesus foi mantida –, defensores da tese atribuíram a qualquer um que apresentasse uma ideia em contrário o objetivo de favorecer esses interesses e manter um status quo. Determinaram unilateralmente que a defesa da tese da adulteração de A gênese e O céu e o inferno deveria ser entendida como sinônimo da defesa da verdadeira teoria moral espírita contra seus detratores, quando, de fato, o cerne da teoria moral já havia sido abordado em outros livros. Kardec indicou que os princípios da Doutrina, incluindo a moral, estão em O livro dos espíritos e afirmou que O evangelho segundo o Espiritismo tem como objetivo abordar a parte moral.

Para mim, Carlos – Adair e Luciana concordam comigo –, o saldo dessa polêmica não resolvida são duas traduções diferentes de A gênese à venda, não só em português, como em diversas línguas. Observamos que uma parte do Movimento Espírita não está a par de que A gênese foi atualizada, nem da suspeita de adulteração. Com isso, muitas pessoas podem ter adquirido, sem saber, a tradução da 1ª edição de A gênese, publicada por algumas editoras no Brasil e, caso não leiam a apresentação dos editores, não saberão que fizeram a escolha de desconsiderar a atualização da obra. Podem, inclusive, surpreender-se ao descobrir, em um grupo de estudo, que seu exemplar é diferente dos demais, que foi o que aconteceu com Carlos de Brito Imbassahy no início do século XXI, fato que o levou a acusar indevidamente Guillon Ribeiro de ter adulterado a tradução brasileira da obra. 

Reformador: Então podemos considerar como encerrada esta questão?

Por todos os argumentos apresentados, estamos convencidos da autoria de Kardec nas edições atualizadas das duas últimas obras fundamentais. Ainda assim, estamos abertos à troca de ideias saudável e colaborativa. Para nós, o campo mais adequado para o diálogo é baseado nos parâmetros usados pela Ciência, isto é, o uso do modelo científico e a submissão dos resultados a um periódico especializado, para análise crítica dos editores e dos pares. Uma vez aprovado e publicado, este poderá ser corroborado ou refutado, usando-se do mesmo método e com a publicação de outro artigo. É um caminho totalmente diferente da publicação de um livro, que passa equivocadamente a impressão de ser conclusivo, não fomenta o debate nem a crítica, ficando restrito à visão da editora que o publicou. Dentro do Movimento Espírita temos algumas opções, por exemplo, o Jornal de Estudos Espíritas (JEE). Publicamos nele um artigo – “Uma revisão na história da 5ª edição de A gênese”[4] – há mais de um ano, sem que houvesse qualquer refutação. Portanto, nossa tese de que não houve adulteração continua corroborada pelas evidências apresentadas.

[1] N.R.: [email protected] ou allankardec.online (Museu AKOL)
[2] N.R.: [email protected] ou facebook.com/HistoriaDoEspiritismo (CSI do Espiritismo)
[3] N.R.: [email protected] ou obrasdekardec.com.br
[4] N.R.: A. Ribeiro Jr., C. S. Bastos, L. Farias, “Uma revisão na história da 5 a edição de A Gênese, Parte I – Os eventos relacionados à impressão e à publicação da edição de 1869”, Jornal de Estudos Espíritas 8, 010209 (2020). DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010209 (https://sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-8—2020/resumo-art-n-010209 Acesso em: 24 jan. 2022).


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