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O tempo de Deus

Por Marta Antunes
Trabalhadora espírita vinculada à Federação Espírita Brasileira desde 1980. Supervisora do programa “O Evangelho Redivivo” – Brasília (DF).

Em Eclesiastes (3: 1-8)[1], encontramos um belo e poético texto a respeito do tempo que merece ser reproduzido aqui:

Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu.
Tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar a planta. 
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de destruir, e tempo de construir. 
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de gemer, e tempo de bailar. 
Tempo de atirar pedras, e tempo de recolher pedras; tempo de abraçar, e tempo de se separar. 
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de jogar fora.
Tempo de rasgar, e tempo de costurar; tempo de calar, e tempo de falar.   
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. 

Palavras sábias atribuídas a Salomão pela tradição rabínica, ainda que o autor do livro Eclesiastes prefira manter-se no anonimato, identificando-se como qohelet, que significada “pregador” ou “mestre”, na melhor das hipóteses. [2]  O texto revela, porém, que o homem só dispõe do tempo presente para agir, considerando-se que, se efetivamente há um tempo determinado para as coisas serem executadas, esse tempo extrapola as previsões e planejamentos, medias e cronometragens, por estar subordinado à vontade de Deus. O tempo de Deus caracteriza-se, pois, como  o tempo oportuno para cumprimento do Seu propósito ou vontade. 

A própria mensuração do tempo é algo arbitrário e abstrato, ainda que necessária à vida na sociedade moderna. Foi definida pelo Sistema Internacional de Unidades (S.I.) que tem por base os princípios da relatividade e o padrão periódico das oscilações da radiação eletromagnética: O padrão de tempo para fins científicos é uma contagem contínua de segundos determinada por vários relógios atômicos espalhados ao redor do globo, conhecido como Tempo Atômico Internacional/TAI. [3]

O tempo é questão que sempre objeto de discussão em nível filosófico que, a rigor, oferece três possibilidades ou concepções fundamentais: “1a o tempo como ordem mensurável do movimento; 2a o tempo como movimento intuito;  3a o tempo como estrutura de possibilidades.” 4 A primeira possibilidade surgiu na Antiguidade, senda defendido por Pitágoras e seguidores que relacionavam o tempo ao movimento cíclico do mundo, do céu e da vida, referências que serviriam, mais tarde, de base para as para a elaboração do conceito científico e  moderno de tempo, que considera os princípios da mecânica de Isaac Newton (1643- 1727)  eos estudos de Albert Einstein (1879-1955). [4],[5]

A segunda concepção está relacionada ao conceito de  consciência que o tempo está vinculado: “o devir intuído”, do alemão Hegel (Georg Wilhelm Hegel – 177-1831), que, contraria, de certa forma, a noção científica, ainda que permaneça o sentido subjetivo, sobretudo no que concerne à noção do “passar do tempo”. [4],[6]

Já a terceira possibilidade deriva-se da filosofia existencialista, em que o tempo é identificado com as ocorrências do presente e como simples  possibilidade do que acontecerá no futuro. Essa previsão futura pode ser entendida pelos processos da intuição. [4],[7]

Essas análises filosóficas  nos conduzem, naturalmente, à convicção que há, de fato, o tempo determinado por Deus, como anunciado no  Eclesiastes, independentemente da base ateísta que predomina nos meios acadêmicos. Para o Espiritismo, não há dúvida: todos estamos subordinados ao tempo estipulado pelo Criador Supremo. Daí a importância de aprendermos a valorizar o papel exercido  pelo tempo na existência e, mais ainda, mantermos atentos ao aviso do tempo, como nos lembra Emmanuel: “O Tempo endereça às criaturas o seguinte aviso, em cada alvorecer: — Certamente, Deus te concederá outros dias e outras oportunidades de trabalho, mas faze agora todo o bem que puderes porque dia igual ao de hoje só terás uma vez.” [8]

A Bíblia apresenta um conceito diversificado de tempo  em relação ao divulgado pela  Ciência e pela  Filosofia. Para os estudiosos dos textos sagrados, assim como para a alguns filósofos, a humanidade  vive no chronos (do grego, tempo), isto é, no tempo cronológico, relacionado às atividades humanas. Todavia,  Deus age em outro tipo de tempo, chamado kairós (do grego, “o momento oportuno”, “certo” ou “supremo”): “Os gregos antigos tinham duas palavras para o tempo: chronos e kairós. Enquanto o primeiro refere-se ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede, de natureza quantitativa), Kairós possui natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno.”[9]

Ambos os conceitos estão claramente delineados  na mitologia grega, aplicando-se o sentido de kairós ao deus do tempo. Essa diversidade de interpretação mostra que, se o homem pretende transformar-se em pessoa melhor deve, obviamente, valorizar as oportunidades do tempo presente (do chronos), mas com o olhar voltado para o amanhã que, ante as oportunidades concedidas pelas reencarnações, transformar-se-á em Espírito puro, de acordo com o tempo de Deus  (kairós), que é sempre infinito.

Emmanuel, analisa o alerta de Paulo de que Aquele que faz caso do dia, para o senhor o faz (Romanos, 14:6) e nos mostra a  importância de aprendermos a valorizar o tempo do hoje, o que transcorre na existência corporal,  para que venhamos a viver plenamente o tempo de Deus. que sempre nos alcança, cedo ou tarde: 

A maioria dos homens não percebe ainda os valores infinitos do tempo. 
Existem efetivamente os que abusam dessa concessão divina. Julgam que a riqueza dos benefícios lhes é devida por Deus.
Seria justo, entretanto, interrogá-los quanto ao motivo de semelhante presunção.
[…]
É lógico que todo homem conte com o tempo, mas, se esse tempo estiver sem luz, sem equilíbrio, sem saúde, sem trabalho?
Não obstante a oportunidade da indagação, importa considerar que muito raros são aqueles que valorizam o dia, multiplicando-se em toda parte as fileiras dos que procuram aniquilá-lo de qualquer forma.
A velha expressão popular “matar o tempo” reflete a inconsciência vulgar, nesse sentido.
[…]
Os interesses imediatistas do mundo clamam que o “tempo é dinheiro”, para, em seguida, recomeçarem todas as obras incompletas na esteira das reencarnações… Os homens, por isso mesmo, fazem e desfazem, constroem e destroem, aprendem levianamente e recapitulam com dificuldade, na conquista da experiência.
Em quase todos os setores de evolução terrestre, vemos o abuso da oportunidade complicando os caminhos da vida; entretanto, desde muitos séculos, o apóstolo nos afirma que o tempo deve ser do Senhor. [10]

Assim , o tempo de Deus nos fornece a esperança de um futuro  promissor,  feliz, que merece se considerado com a devida atenção e cuidados. Assim, com a chegada e mais um ano novo no planeta Terra, recordemos que é também tempo para renovarmos a nossa capacidade de aprender, de semear, de servir e  de colher. Saudamos o ano de 2021 com cântico de Castro Alves, o inesquecível poeta brasileiro:

ANTE OS NOVOS TEMPOS[11]
Castro Alves

Brilham áureos tempos novos
A Inteligência domina,
Fala a Razão cristalina,
Que estuda, aclara e deduz,
A Ciência larga a Terra,
Onde refulge de rastros,
Para a conquista dos astros,
Sob o fascínio da Luz!…

No bojo do firmamento,
Do chão à face da Lua,
A pesquisa continua…
Engenhos e lumaréus!…
A Eletrônica revela
Vida mais alta e mais rica
E o Homem se comunica,
Povo a Povo, Céus a Céus!…

A cultura pede frente,
Entre aplausos invulgares.
No Ar, no Solo, nos Mares —
Em tudo — o apelo ao Porvir!…
De ponta a ponta do Globo,
Em vasta ascensão na História,
Clama o Cérebro — mais Glória!
Grita o Mundo — Progredir!…

Mas no concerto dos louros
Em que a Ideia se embriaga,
Brado aflitivo pervaga —
O choro da multidão!…
São milhões de almas cativas
À ignorância na Terra,
Que a noite da angústia encerra
Nos vales de provação!…

A mágoa segue a penúria,
O crime instala a doença,
Lastima-se turba imensa
Encarcerada na dor!…
A legião do protesto
Volve à barbárie sombria,
Supondo na rebeldia
O facho libertador!…

A guerra distende as garras,
Surgem conflitos de sobra,
A descrença se desdobra
Em chaga descomunal…
E a força do Raciocínio
Do píncaro a que se eleva
Não barra a invasão da treva,
Nem doma a fúria do mal…

Do Alto, porém, dimana
Visão diversa das cousas,
Os mortos rebentam lousas,
Irrompem vozes do Além!…
São Mensageiros do Eterno,
Anjos do Céu sem escolta,
Trazendo Jesus de volta
Para a vitória do Bem!…

Companheiros do Evangelho,
Que o vosso Amor vibre, puro,
Edificando o Futuro
Nas leis Excelsas do Pai!…
Eis que o Cristo nos conclama,
Sob o fulgor do Cruzeiro,
Repetindo ao mundo inteiro:
— “Espíritas, educai!…”

 

REFERÊNCIAS

  • BÍBLIA DE JERUSALÉM.  Coordenadores da edição em língua portuguesa: Gilberto da Silva Gorgulho; Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. Diversos tradutores. Nova Edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2019.  Eclesiastes, 3: 1-8, p. 1074.
  1. DOUGLAS, J.J. (Organizador). O novo dicionário bíblico. Trad. João Bentes. 3. ed. Vila Nova: São Paulo, 2006. Verbete Eclesiastes, livro de, p. 370.
  2. Tempo. Disponível aqui em 2/11/2020.
  3. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 1. ed. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti.  São Paulo: Martins Fontes: 2000. Verbete: Tempo, p. 944.
  4. ─────. p.944-946.
  5. ─────. p.946-947.
  6. ─────. p.947.
  7. XAVIER, Francisco Cândido. O livro de respostas. Pelo Espírito Emmanuel. 1 e. 1 imp. Brasília: FEB. São Paulo: CEU, 2016. Cap.15, p. 39.
  8. Kairós: https://pt.wikipedia.org/wiki/Kair%C3%B3s#cite_note-2 Acesso em 3/11/2020
  9. XAVIER, Francisco Cândido. Caminho, verdade e vida. Pelo Espírito Emmanuel. 1. ed. 17. imp. Brasília: FEB, 2020. Cap. 1, p. 17-18.
  10. _______. Doutrina e vida. Por diversos Espíritos. São Paulo: CEU, 1987. Cap. Ante os tempos novos, pelo Espirito Castro Alves, p.25-28.

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